O vocábulo mais usado por Jesus para referir-se ao que comumente chamamos de inferno é geena. O geena era o aterro sanitário que havia do lado de fora da cidade de Jerusalém. Era considerado um lugar maldito, onde o verme não morria e o fogo nunca apagava.
Para entendermos melhor a natureza do geena, proponho que reflitamos sobre as implicações práticas de algumas das exortações feitas por Jesus. Repare, por exemplo, na advertência abaixo:
“E se a tua mão te fizer tropeçar, corta-a; melhor é entrares na vida aleijado, do que, tendo duas mãos, ires para o inferno, para o fogo que nunca se apaga. {onde o seu verme não morre, e o fogo não se apaga.} Ou, se o teu pé te fizer tropeçar, corta-o; melhor é entrares coxo na vida, do que, tendo dois pés, seres lançado no inferno. {onde o seu verme não morre, e o fogo não se apaga.} Ou, se o teu olho te fizer tropeçar, lança-o fora; melhor é entrares no reino de Deus com um só olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no inferno.” Marcos 9:43-47
Ora, à luz de textos extraídos do Novo Testamento, sabemos que ao ressuscitarmos no último dia, teremos novos corpos, perfeitos e incorruptíveis. Ninguém vai ressuscitar com ausência de algum membro de seu corpo. Não haverá mutilados na glória eterna! Então, o que Jesus quis dizer com isso? O que significaria “entrar no reino de Deus com um só olho”? Trata-se de uma analogia. Algo só era jogado no lixo, quando não tinha mais utilidade. As figuras dos vermes e do fogo inextinguível foram usadas por Jesus para enfatizar. Enquanto ali se depositassem lixos orgânicos (restos de comida, carcaças de animais e etc.), os vermes jamais morreriam. O cheiro era insuportável. Para diminuir a quantidade dos detritos, ateava-se fogo, que por sua vez, nunca se apagava, porque era constantemente alimentado por lixo novo. Jesus faz uma comparação entre “entrar na vida” e ser lançado na lixeira. Era melhor viver sem os membros, do que ser considerado inútil por Deus, mesmo tendo todos os membros.
O geena é o destino de tudo o que se faz inútil dentro do escopo dos propósitos divinos. Isso nos remete a Romanos 3:10-12a:
“Como está escrito: Não há um justo, nem um sequer; não há ninguém que entenda, não há quem busque a Deus. Todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis...”
Não fosse a misericórdia de Deus, todos terminaríamos nesta mesma lixeira.
Portanto, podemos afirmar que o geena representa o fim dado a tudo o que não pode ser aproveitado, que teve sua existência como um fim em si mesmo, que se negou a abrir-se para a vida e que, por isso mesmo, será descartado. É o cumprimento do que Jesus advertiu que ocorreria com quem vivesse em função de aproveitar a vida, desprezando o propósito original de sua existência. “Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á. Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma?” (Mateus 16:25,26a). “Salvar a vida” é uma expressão usada à época que significa “aproveitar a vida”, ou numa linguagem mais descolada, “curtir a vida.” Não que haja algo intrinsicamente errado com isso. O problema é fazer disso o alvo da existência, abraçando o hedonismo como estilo de vida e mantendo-se alheio ao sofrimento dos seus semelhantes. Na perspectiva do evangelho, quem, de fato, aproveita a vida é quem se dispõe a perde-la por uma causa que sobreviva a ela, a causa da justiça e da boa nova, a causa de Cristo. Paulo foi um dos que entenderam e encarnaram este princípio ensinado por Jesus. Pode-se perceber claramente isso ao deparar-se com declarações como a encontrada em 2 Coríntios 12:15: “Eu de muito boa vontade gastarei, e me deixarei gastar pelas vossas almas, ainda que, amando-vos cada vez mais, seja menos amado.” Em outra passagem, em sua despedida dos anciãos de Éfeso, o apóstolo diz: “Mas de nada faço questão, nem tenho a minha vida por preciosa, contanto que cumpra com alegria a minha carreira, e o ministério que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do evangelho da graça de Deus” (Atos 20:24). O inferno (geena) é o resultado de uma vida autocentrada, incapaz de abrir mão de qualquer coisa pelo outro, a não ser que isso resulte em algum dividendo. Alguém que opte por este tipo de existência estéril é capaz de simular altruísmo, heroísmo, solidariedade, com aura de santidade, enquanto dissimula suas verdadeiras intenções e motivações. Paulo denuncia tal habilidade humana de simulação e dissimulação: “Ainda que eu tivesse o dom de profecia e conhecesse todos os mistérios e todo o conhecimento, e ainda que eu tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, se não tivesse amor, NADA SERIA. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para o sustento dos pobres e que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tivesse amor, NADA DISSO ME APROVEITARIA” (1 Coríntios 13:2-3). Uma existência que não seja pautada no amor é forte candidata a ser descartada, a menos que seja reciclada pela graça. Aproveitar a vida é viver para Deus. E viver para Deus é viver para o outro e para o bem de todos. Fora disso, sobra o descarte, o geena, o inferno existencial. Sorte a nossa Deus estar atuando fortemente no ramo da reciclagem.
Jesus faz referência ao geena em várias passagens: Mateus 5:22,29-30; 10:28; 18:9; 23:15, 33; Marcos 9:43,45,47; Lucas 12:5.
É neste contexto que quem chama seu irmão de “tolo” estará sujeito ao fogo do geena (Mateus 5:22). Devemos temer, não os que matam o corpo, e não podem matar a alma, e sim “aquele que pode fazer perecer no geena tanto a alma como o corpo” (Mateus 10:28).
Jesus também denuncia os escribas e fariseus hipócritas, que percorriam “o mar e a terra para fazer um prosélito (novo convertido)”, para depois torná-lo filho do inferno duas vezes mais do que eles. Com isso, Ele estava demonstrando a inutilidade de todo o esforço empreendido por eles (Mateus 23:15). “Como escapareis da condenação do inferno” (v.33)?
Em Tiago 3:6, lemos: “A língua também é fogo, mundo de iniquidade situada entre os nossos membros. Ela contamina todo o corpo, inflama o curso da natureza, e é por sua vez inflamada pelo inferno (Geena)”. O “inferno” aqui é uma referência clara à lixeira. Tiago está falando da lixeira que há no coração humano, e confirmando o que Jesus disse: “Ainda não compreendeis que tudo o que entra pela boca desce para o ventre, e é lançado fora? Mas o que sai da boca, procede do coração, e é isso o que contamina o homem. Pois do coração procedem maus pensamentos, assassínio, adultério, prostituição, furto, falso testemunho, blasfêmia”(Mateus 15:17-19). Em outra passagem, Jesus diz: “Pois da abundância do coração fala a boca”(Lucas 6:45b). No dizer de Paulo quanto àqueles que se extraviaram e se fizeram inúteis, “a sua garganta é um sepulcro aberto; com as suas línguas tratam enganosamente. Veneno de víbora está debaixo dos seus lábios”(Romanos 3:13). Não me admira Jesus ter-lhes chamado de “raça de víboras”!
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