quarta-feira, 5 de junho de 2024

MUNDO


Sem dúvida, dentre os pressupostos existencialistas destaca-se o que afirma que a existência precede a essência. Em outras palavras, não existe uma essência pré-determinada. A princípio, o indivíduo teria somente a existência comprovada. Com o transcorrer do tempo, ele incorporaria a essência em seu ser. Esta essência seria adquirida através de sua existência e não vice-versa. Ele, portanto, não seria um ser pronto, acabado, mas em construção, ou ainda, em fase de acabamento, o que parece concordar com alguns textos bíblicos, como o que diz que somos transformados de glória em glória até alcançarmos a imagem de Cristo, ou o que diz que Aquele que começou em nós a boa obra é quem a completará, ambos de autoria de Paulo. Apesar disso, muitos teólogos acreditam que não há como conciliar o existencialismo com a fé cristã, uma vez que para eles, a essência precede a existência. Se Deus nos predestinou, como dizem as Escrituras, logo, já nascemos com uma vocação, isto é, destinados a ser o que já estava na mente divina. Esta seria a nossa essência. Como conciliar uma coisa com outra? Sinceramente, creio haver aí uma celeuma desnecessária. Existencialismo e fé cristã não são mutuamente excludentes. Cada qual enxerga a realidade de um ponto de vista diferente. Vejamos se é possível concilia-los. 

Em uma viagem, por exemplo, temos o ponto de partida e o destino, a chegada. Entre um e outro, temos o percurso, a jornada em si. Seria correto dizer que a jornada precede a chegada? Obviamente que sim. Ninguém chega ao seu destino sem percorrer a jornada. Entretanto, aquele destino já existia muito antes que a jornada fosse iniciada. Então, em certo sentido, o destino precede a jornada. Tudo vai depender do ponto de vista. Nesse sentido, a existência precede a essência, assim como o nascimento precede a morte. Mesmo que a morte seja um destino inexorável, a única certeza que temos, ela não poderia preceder o nascimento. Esta questão nos remete a outra que durante séculos tem dividido opiniões entre os teólogos cristãos: Deus escolhe e predestina àqueles a quem Ele sabe que hão de crer, ou os que creem o fazem por terem sido escolhidos e predestinados a isso? Afinal, a predestinação é a causa da fé, ou a fé é a causa da predestinação? E ainda: como conciliar a liberdade humana com a soberania divina. Se é Deus quem escolhe e predestina, onde entra a liberdade humana nesta equação? Tais questões perdem a pertinência quando entendemos que na eternidade não existe antes, nem depois. Não existe diferença entre causa e efeito. É como na mecânica quântica, em que a luz se manifesta, ora em ondas, ora em partículas; tudo depende do olhar do observador. Por mais desconcertante que seja para a nossa lógica cartesiana, no mundo subatômico, nem sempre a causa precede o efeito. Portanto, para quem observa do lado da cá, a existência precede a essência. Primeiro existimos, para então construirmos nossa essência. Logo, os filósofos existencialistas estão cobertos de razão. Mas quem observa do lado de lá (Deus) nenhuma precede a outra. Tudo o que existe, existe eternamente em Deus. De acordo com Paulo, Ele “chama à existência coisas que não existem, como se existissem.” Em Deus não há tempo; não há antes, nem depois, somente concomitância. Imagine um carretel de linha. Ambas as pontas podem ser encontradas nele. Uma no início, outra no fim do carretel. Mas se você resolver desfazê-lo, terá que encontrar uma delas, e certamente encontrará a última ponta que foi enrolada. Ao término do processo, você encontrará a primeira ponta. Portanto, a última será a primeira, e a primeira, a última. Porém, ambas, independentemente da ordem em que foram enroladas ou desenroladas, existem em concomitância, isto é, ao mesmo tempo.  

A lógica da fé é análoga à lógica da mecânica quântica. Por isso, Paulo diz: “Pois é Cristo quem morreu, ou ANTES quem ressuscitou dentre os mortos, o qual está à direita de Deus, e também intercede por nós.” Ora, como Ele poderia ter ressuscitado antes de morrer? Do lado de cá, Ele morre para então ressuscitar. Do lado de lá, o propósito vem antes do fato. Logo, a ressurreição vem antes mesmo da morte. Porém, na mente de Deus, a morte e a ressurreição são concomitantes. 

Permita-me outra analogia: Uma semente é uma árvore em potencial. Mas uma árvore produz inúmeras outras sementes. Portanto, cada semente é um número infinito de sementes. Assim, a existência traz a essência em si e a essência traz a existência em si. Existência e essência são concomitantes. 

O Deus que é essência pura, e que, portanto, está para além da existência, mergulhou de cabeça na história, de modo que pudesse perfeitamente Se compadecer de nós. O grande “Eu sou” não tem passado, nem presente, nem futuro. Ele não existe. Ele simplesmente é. Ele transcende a existência. Porém, em Cristo, Deus Se humaniza, Se historioriza adentrando o tempo e o espaço. De sorte que, agora, Ele tem história, passado, presente e futuro. Se antes, Ele Se apresentava como o “Eu sou” , agora Ele Se apresenta como “Aquele que era, que é e que há de vir” , “o mesmo ontem, hoje e sempre.”   

Em Cristo, Deus existe! Ele Se tornou um de nós! Por isso, Ele não apenas tem misericórdia de nós, mas também Se compadece, sente nossas dores e chora nossos dissabores. O Deus Todo-Poderoso agora Se revela vulnerável ao sofrimento humano. Eis Sua fraqueza. Eis Sua loucura infinitamente mais sábia que toda nossa vã sabedoria. O Todo-poderoso também é o Todo-amoroso.

Acredito que aqui se encerra toda a discussão entre os pressupostos existencialistas e a fé. E aqui, ouso parafrasear Jesus: Vai chegar a hora, e já chegou, em que não importará mais se a verdade se encontra no monte da existência ou no templo da essência, mas no inconsciente e na consciência, em espírito e em verdade, no ideal e no real, no subjetivo e na objetividade. Cristo segue sendo o ponto de convergência, a síntese de tudo.

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