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quinta-feira, 21 de abril de 2022

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 O EVANGELHO E AS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA - 


A julgar pela reportagem do Fantástico do último domingo, várias escolas de samba do Rio trarão para a avenida enredos com temática voltada para religiões de matriz africana. Como devo me posicionar como cristão? Devo me sentir incomodado com homenagens às entidades cultuadas no candomblé e na umbanda? A resposta é não. Assim como não me incomodo quando trazem temáticas cristãs como fez a Mangueira no último carnaval antes da pandemia.


Ainda que não compartilhe de alguns dos valores e doutrinas apregoados nessas tradições, devo buscar compreender o que representam na luta do negro pela manutenção de sua identidade cultural depois que seus ancestrais foram arrastados de seu país para servirem como escravos.


É importante frisar a distinção entre os orixás (entidades geralmente ligadas a forças da natureza) e as entidades de rua, geralmente invocadas na umbanda, fruto do sincretismo com o cristianismo. Ao mesmo tempo em que identificam similaridade entre seus orixás e os santos católicos, os umbandistas cultuam também entidades oriundas das culturas indígena e cigana. Vejo no sincretismo a tentativa desesperada de manter acesa a chama da tradição, mesmo tendo que fazer concessões e adaptações. 


Alguns adotaram a figura do diabo para espantar os que queriam se intrometer em seus cultos, recorrendo ao medo que seus opressores cultivavam do arqui-inimigo de Deus. Mas vale ressaltar que não há “diabo” na mitologia iorubá, de onde se origina o candomblé, e posteriormente, a umbanda. 


Após a abolição da escravatura no Brasil, os negros foram expulsos das fazendas de engenho e a maioria vagou como indigente, sem qualquer perspectiva de futuro. Somente as mulheres conseguiam empregos como empregadas domésticas e, frequentemente, tinham que lidar com o assédio de seus patrões ou se prostituir para sustentar seus filhos e maridos desempregados. 


É nesse contexto que surge a figura do malandro, homens analfabetos, desprezados pela sociedade, condenados a viver de bico ou da exploração da prostituição. A figura do malhando tornou-se no arquétipo que daria origem a diversas entidades de rua. 


Tudo o que caracterizava os ex-escravos era reprimido, desde a religião, passando pela música, a dança, a luta (capoeira) e os meios de sobrevivência. 


Assim como a cultura judaica se adaptou e sobreviveu ao longo dos séculos após a diáspora, a cultura africana, e em particular a iorubá, tem sobrevivido, ora recorrendo ao sincretismo, ora se impondo pelo medo, permitindo-se ser associada à prática de bruxarias e afins. 


Engana-se quem pensa que o processo de sincretismo tenha terminado. Se por séculos teve no catolicismo seu par, nas últimas décadas tem encontrado assimilação no movimento evangélico pentecostal. Basta observar algumas manifestações atribuídas ao Espírito Santo em cultos fervorosos conhecidos como reteté. As similaridades são indiscutíveis. Até os “corinhos de fogo” lembram os pontos de umbanda e candomblé, sendo entoados enquanto os crentes “rodam no manto” como nas rodas do terreiro. Até a batida da bateria remete aos atabaques. Sem que tenham consciência, sua ancestralidade vem à tona com força total.


Com respeito ao Carnaval, é absolutamente previsível que numa festa produzida principalmente por descendentes de escravos se faça o resgate e a valorização da cultura de quem sobreviveu à escravidão, humilhação, perseguição e desprezo por tantos séculos.


Aos cristãos cabe entender os motivos, conviver em harmonia, se envergonhar pelos erros praticados em nome de sua fé e demonstrar que o que deve caracterizar sua espiritualidade é o amor e não a intolerância e a opressão.


Demonizar tradições religiosas de matriz africana também é uma expressão de racismo. No relato do Novo Testamento, Jesus se depara com um homem endemoninhado que ao ser perguntado sobre o seu nome, apresenta-se como legião, nome dado a um agrupamento de soldados romanos. Portanto, os demônios se identificam com as forças opressoras, e não com a espiritualidade dos oprimidos. Antes de busca-los nos terreiros dos que resistem ao poder colonizador, deveríamos identifica-los em expressões de religiosidade que têm como único objetivo justificar a dominação de quem se acha divinamente autorizado a oprimir e explorar. Os demônios estão nos altares, escondidos atrás de discursos de ódio travestidos de piedade. Os demônios estão nos púlpitos dos que se vendem aos interesses de uma elite política mesquinha e racista. Deus sempre estará com os oprimidos, independentemente da tradição religiosa que sigam. Deus sempre será contra os opressores, mesmo que usem o Seu santo nome para justificar a opressão.


“Meu nome é legião”, respondeu o homem possesso de demônios à pergunta de Jesus. Conhecido como Gadareno, aquele homem vivia como um animal selvagem, perambulando pelas ruas e cemitérios de Decápolis, região dominada pelas legiões romanas. Aquela não era uma possessão comum. O Gadareno era

habitado por um coletivo de demônios. Tratava-se dos demônios oriundos de outras terras, que vieram com as forças invasoras, com suas pretensões colonizadoras. Por isso, o demônio implora para não ser expulso daquela região. Quando os europeus desembarcaram nas Américas, trouxeram na bagagem os seus próprios demônios e não apenas doenças para as quais os nativos não tinham imunidade. Não são demônios os que vieram com os escravos em seus cultos animistas, nem os que eram cultuados pelos povos originários. Tais entidades são arquétipos, percepções que os povos tinham de fenômenos naturais que não podiam explicar. Os demônios vieram com os que devastaram as civilizações que aqui já estavam, pilhando impérios, aproveitando-se da ingenuidade dos que os consideravam deuses. Os demônios que aportaram aqui tinham pele alva, sotaque ibérico e costumes estranhos. Outros demônios chegaram à Índia com os ingleses, na África do Sul com os holandeses, e em tantas outras terras com aqueles que pretendiam conquistá-las e reivindicá-las às coroas que representavam. Tais castas demoníacas se manifestam na opressão exercida pelos exploradores. Não habitam apenas corpos, mas estruturais sociais injustas. No Brasil atual, eles não estão nas favelas, nos terreiros, mas nos palácios, nos condomínios de luxo e em suntuosas catedrais. Como as legiões romanas, organizam-se em quadrilhas que assaltam o erário público, que exploram os fiéis com promessas mentirosas, que promovem o ódio, o preconceito e a intolerância contra a população LGBTQIA+, as minorias étnicas e os fiéis de religiões de matriz africana, que desqualificam a luta feminista, que desdém dos direitos da classe trabalhadora, que espalham fake news, que tratam seus rebanhos como currais eleitorais, que endossam políticas negacionistas e genocidas em nome da fé, etc. Aqui seu nome não é legião, é religião. Não me refiro à religião em seu sentido lato (do latim religare), que provê a religação entre os seres humanos, independentemente de distinções étnicas, sexistas, confessionais ou sociais, fazendo com que nos preocupemos em cuidar dos mais vulneráveis representados em Tiago pelos órfãos e viúvas. Refiro-me à religião como instrumento que visa legitimar o poder e os interesses de quem lucra com a exploração. Portanto, em vez de religião, deveria ser chamada de reLEGIÃO. Trata-se, portanto, do que o livro de Apocalipse chama de “Grande Babilônia “ que tornou-se morada de todo tipo de demônios. São estes demônios que precisam ser exorcizados do cenário político brasileiro para que finalmente alcancemos a tão sonhada justiça social, tornando-nos, assim, um dos protagonistas na construção da civilização do amor.


Louvo a Deus pelo privilégio de viver num país laico que preza pela liberdade religiosa de seu povo. Louvo a Deus por viver num país onde seja possível alguém prestar seu culto sem interferência do estado. Louvo a Deus pela liberdade que um fiel de uma religião de matriz africana tem de arriar seu despacho numa encruzilhada e oferecer ali seu sacrifício. Pois desfruto desta mesma liberdade quando faço daquela encruzilhada um lugar de onde anuncio a boa nova de Cristo. Não posso postular para mim a liberdade que sonego aos outros. Sua galinha preta, sua cachaça, suas velas, suas flores, não devem me ofender, mas levar-me a agradecer a Deus pela possibilidade de que alguém cultue de acordo com a sua consciência. Se quero que respeitem a minha vigília de oração, devo respeitar seus atabaques. Se quero que respeitem meu santuário, devo respeitar igualmente os seus terreiros. A base do respeito e da tolerância é o amor. A base de toda intolerância é o preconceito.

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