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quinta-feira, 17 de agosto de 2023

PATENTE

 A QUEBRA DE PATENTE DA GRAÇA - 


Anos atrás, no episódio em que uma transexual encenou a crucificação em plena parada gay, alguém escreveu em meu perfil: “Pai, perdoa-lhe, porque ela não sabe o que faz.” Por alguma razão, aquilo me soou desconcertantemente presunçoso. Não resisti e escrevi embaixo: Pai, perdoa-nos, pois não sabemos o que dizemos. Talvez, aquela transexual soubesse mais o que estava fazendo do que nós o que temos dito. Não se escandalize ainda. Deus tem dessas coisas. Ele se revela a quem quer, e não precisa de nossa autorização para isso. Não detemos o copyright de Deus. E se quer mesmo saber, Ele já quebrou esta patente faz tempo, desde que Jesus disse que o vento sopra onde quer, e ninguém sabe de onde veio, nem para onde vai. Se quisermos ser co-partícipes do que Deus está fazendo, precisamos descer de nosso pedestal, abdicar de nossa presunção e admitir a sua atuação para muito além de nosso perímetro eclesiástico.


Os discípulos foram matriculados num curso intensivo que visava desintoxicá-los de todo tipo de preconceito, a começar pelo que nutriam contra os samaritanos, aquela “raça mestiça” detestada pelos judeus.


As duas primeiras lições já haviam sido ministradas. A primeira, através de uma parábola. A segunda, através da gratidão de um leproso curado. Mas, nenhuma lição foi tão radical quanto a aprendida à beira de um poço.


O texto parece insinuar que Jesus sentiu-se incomodado por sua popularidade ascendente. O comentário que chegara aos ouvidos dos religiosos era de que o sucesso alcançado por Jesus havia desbancado o ministério de seu primo João, e que o número de pessoas batizadas por seus discípulos ultrapassava em largo o de seu predecessor. Os discípulos devem ter ficado bem confusos quando Jesus resolve deixar aquela região e retornar para a Galileia, onde não gozava de tanta credibilidade e fama. Mais confusos ficaram quando lhes anunciou que era necessário passar por Samaria. A primeira experiência havia sido horrível. Os samaritanos negaram-se a hospedá-los. Como entender o que se passava na cabeça de Jesus? Havia rotas alternativas, mas Ele insistia em passar por lá.


Quando chegaram numa cidade samaritana chamada Sicar, Jesus sentou-se junto a um poço para descansar, enquanto seus discípulos saíram em busca de comida. Era quase meio-dia, quando uma mulher samaritana se aproximou para tirar água. Sem qualquer cerimônia, Jesus se dirige a ela pedindo-lhe água. Percebendo que ele era judeu, ela questionou sua abordagem: “Como sendo tu judeu, me pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana?” Só o fato de ela ser mulher já se constituía num enorme tabu para aquela época. Homens não abordavam mulheres estranhas publicamente. Mas nada pesava mais do que o fato de ser samaritana. Jesus, portanto, quebra dois tabus numa tacada só (Jo.4:1-30).


Todos conhecemos a direção que aquela conversa tomou. Jesus lhe oferece água viva. Mas ela não percebe que se tratava de uma figura de linguagem. A primeira coisa que faz é tentar descredenciá-lo. “Não me leve a mal, mas você não tem como tirar água deste poço fundo" (perdoe-me as paráfrases que usarei a partir deste ponto). Em seguida, ela acaba trazendo à baila questões nevrálgicas que alimentavam a hostilidade recíproca entre seus respectivos povos. A primeira delas era o fato de ambos terem um ancestral comum. “Você não está querendo dizer que é maior que o nosso pai Jacó, está? Foi ele que nos deu este poço!” Era como se ela dissesse: “Não me venha com este papo de que judeus têm o que os samaritanos não têm. Jacó não é pai só de vocês. Ele também é nosso pai! E quem você pensa que é para me oferecer algo que nem mesmo ele pôde dar?”


Jesus não entra na pilha dela. Seu propósito não é o de entrar numa queda de braços para ver quem é o dono da razão. Esse tipo de discussão jamais lhe apeteceu, e, sinceramente, não creio que Ele tenha mudado de lá para cá. Em vez disso, Ele avisa que o tipo de água que lhe oferecia era de natureza diferente daquela:“Qualquer que beber desta água tornará a ter sede; mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede.” Sua dificuldade de abstrair a impede de entender a metáfora. Não sei se em tom irônico, ela responde: “Ok. Então, me dê logo desta água para que eu não precise mais ficar voltando aqui todo dia pra tirar água.” Sem se fazer de rogado, Jesus lhe faz um inusitado pedido: “Vai, chama o teu marido, e vem cá”. Meio sem graça, ela responde: “Agora, o Senhor me pegou. Não tenho marido!” Creio que ela deva ter pensado: “Ufa! Já estava começando a achar que ele era um profeta ou coisa parecida. Mas se ele desconhece meu estado civil, então, é apenas um estranho querendo jogar conversa fora. Ou talvez, esteja me testando para me passar uma cantada.” Para sua surpresa, Jesus respondeu: “Disseste bem: Não tenho marido; porque tiveste cinco maridos, e o que agora tens não é teu marido; isto disseste com verdade.”


Engana-se quem enxerga aí uma abordagem moralista, que visasse expor as fraquezas daquela mulher a fim de condená-la. Longe disso, a pretensão do Mestre era revelar a que tipo de sede Ele se propunha saciar. Sede que a levara a experimentar múltiplos relacionamentos, e que, naquele momento a envolvera numa relação adúltera. Não bastasse o fato de ser mulher e samaritana, ainda por cima tinha uma moral suspeita. Duvido que a comunidade local desconhecesse isso. Estar ali sentado em sua companhia era uma exposição e tanto para Jesus.


“Vejo que és profeta”, retrucou. Constrangida, ela tenta mudar o foco e o rumo da conversa. “Nossos pais adoraram neste monte, e vocês, judeus, vivem dizendo que o lugar certo para adorar a Deus é em Jerusalém.” Jesus não permitiu que a conversa descambasse nem para o moralismo estéril, tampouco para uma discussão teológica. “Mulher, acredite no que vou lhe dizer: está chegando a hora, e se quer mesmo saber, já chegou, em que o importante não é o lugar onde se adora a Deus, se no monte ou no templo em Jerusalém. Esta é uma questão que já deveria ter sido superada! O que importa para o Pai é ser adorado em espírito e em verdade.”


Uma das dificuldades que temos com alguns segmentos da sociedade é que sempre trazemos à baila assuntos que já perderam sua relevância há tempos. Tornamo-nos um povo retrógrado, com uma agenda anacrônica e uma teologia que cheira à naftalina. Insistimos em responder a perguntas que deixaram de ser feitas há quinhentos anos. Ignoramos descobertas científicas, avanços sociais, contextos históricos, para impor nossa moral e nossos costumes, fechando-nos inteiramente ao diálogo. Nem sempre Deus está se importando com aquilo que nos tira o sono. “Deus é Espírito”, foi a resposta que Jesus deu à samaritana. Portanto, não queira rebaixá-lo a questiúnculas.


Impressionada, ela confessou-lhe: “Eu estou sabendo que quando o Messias vier, vai nos esclarecer sobre muita coisa”. Jesus respirou fundo, olhou à sua volta para conferir se não vinha ninguém, mirou-a nos olhos e disse: “Eu o sou, eu que falo contigo”. Foi a primeira vez que Jesus se declarou o Messias. E justamente a uma mulher samaritana. Os discípulos jamais haviam ouvido isso de seus lábios. Mas Ele não resistiu e acabou segredando àquela mulher a sua verdadeira identidade.


Quando os discípulos chegaram, flagraram-no papeando com a tal mulher. O texto afirma que eles ficaram estupefatos, porém, não se atreveram a questionar. A mulher, então, deixou de lado o seu cântaro e foi correndo à cidade espalhar entre os seus moradores a sua descoberta. Interessante notar que ela não demonstrou estar certa de nada acerca d’Aquele que se revelara o Cristo. O convite que fez aos seus concidadãos foi: “Venham e vejam um homem que me disse tudo quanto tenho feito. Será que ele não é o Cristo?” Resultado: a cidade inteira saiu ao encontro de Jesus.


O que move o mundo não são as respostas, mas as perguntas. Soa presunçoso demais apresentar-nos ao mundo como possuindo todas as respostas. É mais honesto dizer como ela, e admitir que ainda não sabemos de tudo quanto gostaríamos de saber. As pessoas se sentem bem mais à vontade seguindo quem tem as perguntas certas, do que quem afirma ter respostas para todas as questões. 


Há uma passagem onde Jesus ordena que dois de seus discípulos providenciassem um local para sua última ceia. Em vez de lhes dar um endereço certo, Ele s orienta a seguir um jovem que aparecesse nas ruas carregando um cântaro. Na porta por onde ele entrasse, eles deveriam se apresentar e dizer que seu mestre pretendia festejar a páscoa lá. Àquela época, era raríssimo flagrar um homem em atividades domésticas como aquela. Buscar água era atividade restrita às mulheres. Pois Deus usa um jovem que estava quebrando um tabu sexista para guiar os discípulos de Jesus ao lugar que lhes serviria de cenário não apenas para a santa ceia, mas também para a descida do Espírito Santo cerca de cinquenta dias depois.

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