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quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

ODIO

 UM DEUS QUE ODEIA SEUS INIMIGOS NÃO PODE EXIGIR QUE EU AME OS MEUS 


Alguém, por favor, ajude-me a entender a desconcertante contradição entre a exigência do evangelho para que amemos aos nossos inimigos e a ira de Deus contra Seus próprios inimigos. Não devemos “imitar a Deus como filhos amados”? Como posso amar e perdoar a meus inimigos se Deus odeia os seus? Se isso não é uma contradição, então, temos que admitir que nossa interpretação é que deve estar equivocada. Ou será que Deus é do tipo que diz “faça o que eu mando, mas não faça o que eu faço”? Como poderia exigir que déssemos de comer ao nosso inimigo, mas ao mesmo tempo ameaçar enviar Seus inimigos para serem torturados eternamente?


Proponho que deixemos de lado a paixão e examinemos friamente a questão.


Muitos de nossos pressupostos são frutos de equívocos passados de geração em geração, mas que ninguém tem coragem de confrontar e revisar. Jesus abriu-nos um importante precedente no Sermão da Montanha ao propor a revisão de alguns deles. Ao todo, são seis interjeições de Cristo que começam com “Ouvistes que foi dito (...) Eu, porém, vos digo”( Mt.5:21,27,31,33, 38,43). Jesus não propõe uma mudança nos mandamentos em si, mas na interpretação que se fazia deles. Uma coisa é O QUE lemos, outra é COMO lemos. Uma tem caráter objetivo, a outra, subjetivo. Por isso, Jesus perguntou ao doutor da lei: “Que está escrito na lei? Como lês?” (Lc.10:26).


Numa das interjeições, Jesus diz:


 “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus.” Mateus 5:43-44


De fato, em lugar algum das Escrituras encontramos instrução direta sobre “odiar os inimigos”. O mais próximo disso é o que lemos em Deuteronômio 33:27: “O Deus eterno é a tua habitação, e por baixo estão os braços eternos; e ele lançará o inimigo de diante de ti, e dirá: Destrói-o.” Deduziu-se daí que Deus estivesse instruindo Seu povo a odiar a seus inimigos. Como poderíamos destruir a quem não odiássemos? Foi provavelmente baseado nisso que Davi compôs seu hino: “Persegui os meus inimigos e os destruí, e nunca voltei atrás sem que os consumisse” (2 Sm.22:38). Tenho a impressão que é também baseado nisso que muitos pregadores contemporâneos insistem com sua teologia revanchista, instigando o povo a desejar ver seus inimigos sob seus pés. Todavia, há que se levar em conta o contexto em que tanto Moisés quanto Davi se expressaram de tal maneira. Em ambos os casos, o povo de Israel estava envolvido em campanhas militares, e precisava de garantias de que seria bem-sucedido. Não se pode tomar tais palavras e aplicá-las num contexto pessoal. Sem contar que hoje vivemos sob a égide de uma nova aliança, onde o “olho por olho” foi substituído pelo “ofereça a outra face”.


Quando Jesus foi rejeitado em uma aldeia samaritana, dois dos Seus discípulos, Tiago e João, que também haviam sido discípulos de João Batista, propuseram que se orasse para que Deus enviasse fogo do céu e consumisse aquela gente. Eles chegaram a citar Elias, justificando nas Escrituras o seu espírito revanchista. Mas Jesus os repreendeu, dizendo: “Vós não sabeis de que espírito sois. Porque o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las” (Lc.9:55-56). Não somos discípulos de Moisés, Davi ou Elias. Somos discípulos de Jesus, e compete ao discípulo buscar assemelhar-se ao seu mestre.


Ao denunciar o espírito revanchista do Seu povo e propor uma nova via, Jesus corria o sério risco de ser chamado de herege. Jesus estava questionando uma pseudo-verdade que se estabelecera naquela cultura por vários séculos. Em vez de odiar os inimigos, Seus discípulos deveriam amá-los, caso contrário, jamais se pareceriam com Seu Pai que está nos céus.


Ora, se Deus requer que amemos a nossos inimigos, podemos inferir que Ele igualmente ame a Seus inimigos, sem exceção. Se Deus ama somente aqueles que O amam, então Ele não é melhor do que o mais vil pecador. Pelo menos, esta é a conclusão inevitável a que chegamos ao lermos: “Se amardes aos que vos amam, que mérito há nisso? Pois também os pecadores amam aos que os amam. E se fizerdes bem aos que vos fazem bem, que mérito há nisso? Também os pecadores fazem o mesmo” (Lc.6:32-33)?


O que dizer, então, do provérbio que diz “eu amo os que me amam” (Pv.8:17)? Fica subentendido que Deus só ame em reciprocidade ao amor que lhe é devotado. Trata-se, na verdade, de uma alegoria, onde a sabedoria é apresentada de maneira personificada. É a sabedoria que declara amar os que a amam. Não se pode colocar isso nos lábios de Deus.


O problema não termina aí. Há ainda outras passagens que parecem dizer que Deus só ame os que o amam. Veja, por exemplo, João 14:21, onde Jesus diz: “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei, e me manifestarei a ele.” O que Jesus, de fato, está dizendo aqui é que aquele que O ama, o faz justamente por ser amado por Seu Pai. Logo, nosso amor a Deus resulta de Seu amor por nós, e não vice-versa. Ou não é isso que as Escrituras claramente dizem?: “Nós o amamos a ele porque ele nos amou primeiro” (1 Jo.4:19). O que nos confunde um pouco é o fato de que o grego tem certos tempos verbais que se perdem quando o texto é traduzido para o nosso idioma. Um deles, por exemplo, é o aoristo. Uma tradução possível para esse versículo seria: “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama, e aquele que me ama é o que é amado de meu Pai...”


O fato inegável é que nada fizemos para merecer o Seu amor. E nada podemos fazer para alterar o que Ele sente por nós. Segundo Paulo, todos “éramos por natureza filhos da ira, como os outros também. Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, Estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo” (Ef.2:5-6). Apesar de merecermos Sua justa ira, Ele ainda assim nos amou.


Em outra passagem, Jesus diz: “O Pai mesmo vos ama; visto que vós me amastes e crestes que eu saí de Deus” (Jo.16:27). Pode parecer que Ele estivesse afirmando que o amor do Pai por nós se deve ao fato de amarmos a Seu Filho. Porém, a verdade é exatamente o oposto. O amor que temos por Jesus é tão somente a evidência do amor com que o Pai nos ama.


Seu amor por nós independe de nosso amor por Ele. Paulo parece ter compreendido as implicações éticas por trás desta revolucionária verdade. Constrangido por este amor, o apóstolo decidiu igualmente amar às últimas consequências. Por isso, confessou: “Eu de muito boa vontade gastarei, e me deixarei gastar pelas vossas almas, ainda que, amando-vos cada vez mais, seja menos amado” (2 Co.12:15). Será que o amor de um simples mortal superaria o amor de Deus? Se Paulo pôde amar mais do que o próprio Deus, então, proponho que passemos a cultuá-lo no lugar de Deus. É claro que isso não é possível. Ninguém jamais amou como Ele nos amou, ama e amará. Ainda que seja menos amado... Ainda que não O correspondamos.


E quanto à ira justa de Deus? A Bíblia parece clara ao afirmar que Deus ama a justiça, mas abomina a iniquidade. Sua ira é destinada a todos os que praticam a injustiça. Concluímos, precipitadamente, que Deus seja incapaz de amar àqueles sobre quem repousa a Sua ira.


Para corrigir nossa perspectiva, temos que entender que o termo “ira” não é antônimo de “amor”. O contrário de amor é indiferença. Mesmo a ira divina nada mais é do que uma faceta do Seu amor. Há mais amor numa única gota da ira divina do que em todo o oceano de amores humanos.


Por ser amor, Deus é incapaz de manter-se indiferente a qualquer de Suas criaturas. Amor não é apenas um dos Seus atributos, mas Sua essência. Ele não tem amor. Ele é amor! Mesmo na ira, Ele se lembra da misericórdia (Hc.3:2), razão pela qual não somos consumidos por Sua justa indignação contra o pecado (Lm.3:22). E Seu “ódio” pelo pecado é proporcional ao Seu amor pelo pecador. Ele odeia o pecado justamente pelo mal que causa à Sua criatura.


Enquanto Sua ira dura só um instante (Sl.30:5), Sua misericórdia dura para sempre. Tenho a impressão de que esta verdade foi invertida. Na compreensão de muitos, a misericórdia dura um ínfimo momento, enquanto Sua ira dura para sempre.


Seu amor tem sempre a palavra final. Nas palavras de Tiago, “a misericórdia triunfa sobre o juízo” (Tg.2:13). O salmista garante: “Não reprovará perpetuamente, nem para sempre reterá a sua ira (...) Mas a misericórdia do Senhor é desde a eternidade e até a eternidade” (Sl. 103:9,17).


Mesmo a rejeição provocada pelo pecado, a mais eloquente expressão da ira de Deus, não é eterna, tampouco, definitiva. Além de ter duração limitada, Sua ira também é devidamente dosada, pois Ele conhece a nossa estrutura: “Por um breve momento te deixei, mas com grandes misericórdias te recolherei; com um pouco de ira escondi a minha face de ti por um momento; mas com benignidade eterna me compadecerei de ti, diz o Senhor, o teu Redentor” (Is. 54:7-8). Somente um Deus que agisse assim poderia exigir: “Dê a sua face ao que o fere, e farte-se de afronta. Pois o Senhor não rejeitará para sempre” (Lm.3:30-31).


Quando aplicado a Deus, o termo “ira” é sinônimo de “juízo”, “disciplina” ou “correção”, e não de “ódio”. Ao corrigir-nos, Deus demonstra o quanto Se importa conosco, sem jamais desistir de amar-nos.


“Se os seus filhos abandonarem a minha lei e não seguirem as minhas ordenanças, se violarem os meus decretos e deixarem de obedecer aos meus mandamentos, com a vara castigarei o seu pecado, e a sua iniquidade com açoites; mas não afastarei dele o meu amor; jamais desistirei da minha fidelidade.” Salmos 89:30-33


Tal verdade ecoa por toda a Escritura. O escritor de Hebreus diz que “o Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer que recebe por filho” (Hb.12:6). E ainda: “se pecarmos voluntariamente, depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados, mas uma certa expectação horrível de juízo, e ardor de fogo, que há de devorar os adversários” (Hb.10:26-27). Portanto, não adianta tentar compensar nossos erros com sacrifícios, penitências e boas obras. A única coisa que nos resta é a correção dada por Aquele que nos ama infinitamente. Esse “ardor de fogo” nada mais é do que o juízo de Deus sobre o pecado. É o fogo que purifica a prata para que possa refletir perfeitamente a imagem do ourives. Sua justiça não é apenas retributiva, punitiva, mas, sobretudo, corretiva. Vai doer, porém, vai curar.


O que nos torna “inimigos de Deus” são nossas más obras (Cl.1:21). Mesmo depois de havermos sido convertidos a Ele, resta-nos resquícios do velho homem. Trata-se de um impostor que insiste em habitar em nossa carne. É este adversário que precisa ser consumido. Por isso, Tiago nos instrui a que nos despojemos “de toda sorte de imundícia e de todo vestígio do mal” (Tg.1:21). O fogo visa depurar-nos, eliminar tudo o que nos afasta de Deus, inflamar nossas consciências, constrangendo-nos e levando-nos ao arrependimento.


Para os que creem, basta olhar para cruz e o amor ali tão magnificamente expressado, e sua consciência é logo inflamada. Todavia, nem todos se dispõem a crer. Para muitos, o fato de Deus ter amado o mundo a ponto de entregar Seu Filho para morrer por nós não passa de uma fábula arquitetada pela religião. Como, então, poderíamos atear fogo em suas consciências? Paulo nos apresenta a saída: “Portanto, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás brasas de fogo sobre a sua cabeça. Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem” (Rm.12:20-21). Brasas são amontoadas na consciência de quem é alvo de nosso amor sem merecê-lo. Um santo constrangimento leva-o a perceber sua miséria e carência. E é ali, pela consciência, que nosso adversário começa a ser devorado pelas chamas da ira amorosa de Deus. Foi este “fogo consumidor” que levou o centurião que crucificara a Jesus a concluir: “Verdadeiramente, este era o Filho de Deus” (Mt.27:54)! Pode-se rejeitar as informações contidas no Evangelho, mas qualquer ser humano é vulnerável a um gesto de amor sincero. O centurião jamais ouvira sobre o Evangelho. Não houve ali um assentimento intelectual. Porém, ouvir Jesus pedir que o Pai perdoasse aqueles que O crucificavam, e vê-lo tratar dignamente àquele moribundo crucificado à Sua direita, despertou no soldado romano uma profunda admiração, que levou-o à conclusão de que Aquele homem não era menos do que afirmavam Seus discípulos.


Não há recurso apologético mais poderoso do que o amor. Foi o próprio Jesus quem afirmou que o mundo nos reconheceria como Seus discípulos se tão-somente nos amássemos uns aos outros. Se quisermos, portanto, alcançar o coração dos que nos odeiam, não nos resta alternativa senão amá-los profundamente, da mesma maneira como Cristo nos amou quando ainda éramos Seus inimigos. E amar é muito mais do que nutrir um bom sentimento. Amar é servir, promover o bem, sem esperar absolutamente nada. Só assim, nos revelaremos ao mundo como “filhos do Altíssimo; porque ele é benigno até para com os ingratos e maus” (Lc.6:35).

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