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domingo, 28 de maio de 2023

AMOR

 ENTRE O AMOR E O INFERNO


Chamem-me de sentimentalista, se quiserem. Mas é inadmissível que aqueles em quem se deve encontrar “o mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus” sintam-se confortáveis ante a realidade do inferno.


Se é verdade que o amor jamais se acaba, logo, estamos “condenados” a amar para sempre os que nos acompanham na estrada da existência. Mesmo depois que adentrarmos os portais celestiais, nosso amor por cada um deles permanecerá e, talvez, até aumente, uma vez que estaremos livres dos ruídos de nossa natureza pecaminosa. Quem ama, certamente se importa com o bem do ente amado. Como, então, poderíamos nos sentir plenamente felizes desfrutando da glória destinada aos filhos de Deus, sabendo que em algum lugar do universo, as pessoas a quem tanto amamos estarão sendo torturadas, e que seu sofrimento não duraria um dia, nem um ano, ou mesmo um século, mas por toda a eternidade?


Será que teremos que desistir de amá-las? Será que Deus nos submeterá a uma amnésia? Será que pais que foram salvos terão que se esquecer da existência dos filhos condenados à perdição?


Por duas vezes lemos no livro de Apocalipse que Deus enxugará dos nossos olhos toda lágrima (7:17; 21:4). As razões pelas quais não haverá mais choro é que também “não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor.” Se ainda houver dor em algum lugar do cosmos, então, haverá motivo para lágrimas. Não apenas por parte dos que forem condenados, mas também dos que com os tais se importarem.


Mas se formos submetidos a uma espécie de lobotomia, e nossa memória for afetada, logo, não seremos quem realmente somos. Como poderemos agradecer por havermos sido salvos, se nem ao menos nos lembrarmos de quê fomos salvos? Como bendizê-lo se minha alma simplesmente se esquecer de seus benefícios? Para lembrar-me de tais benefícios, terei que recordar de todos quantos foram instrumentos de Deus para me abençoar, incluindo os que, porventura, não houverem sido salvos. Não poderá haver lapsos de memória.


Ainda que os vínculos familiares se dissolvam na eternidade, o amor que os nutriu não poderá apagar. Os que hoje gozam do status de pais ou de filhos, na eternidade serão irmãos. Marido e mulher seguirão em seus relacionamentos, não mais como cônjuges, mas irmãos.


O ponto em que almejo tocar é se o sofrimento daqueles que nos são caros não poderia igualmente nos afetar. Se não, de que maneira poderíamos desfrutar das bem-aventuranças prometidas aos misericordiosos, se nem ao menos fôssemos capazes de nos compadecer deles? Se sim, como conciliar a doutrina do sofrimento eterno no inferno com os prazeres indizíveis que a presença imediata de Deus nos proporcionará?


Este dilema só se mantém de pé devido à concepção que temos do inferno, que julgo equivocada. Muito do que temos ouvido acerca do inferno não tem qualquer respaldo bíblico, mas é fruto do sincretismo entre a fé cristã e o paganismo. É lamentável constatar a ignorância que boa parte do povo evangélico demonstra sobre o assunto. Basta assistir aos testemunhos de quem afirma ter visitado o inferno e se deparado com caldeirões onde pessoas eram cozinhadas vivas, com diabos portando tridentes, enormes chifres, rabo pontiagudo, e expelindo enxofre, incumbido de torturar os condenados. Não é preciso conhecer profundamente a teologia cristã para perceber que tudo isso não passa de mitologia grotesca. Tem mais a ver com Dante e Milton do que com a Bíblia.


Dante Alighieri, escritor e poeta italiano que viveu entre 1265 e 1321, foi responsável por disseminar as fantasias acerca do inferno que hoje povoam o imaginário popular. Em sua obra “Divina Comédia”, Dante descreve o inferno de acordo com a concepção medieval, formado por nove círculos, três vales, dez fossos e quatro esferas. O inferno se tornaria mais profundo a cada círculo, de acordo com a gravidade dos pecados cometidos pelos que para lá fossem enviados. O adjetivo “dantesco”, sinônimo de horripilante, terrível, macabro, advém da descrição dos horrores perpetrados pelos demônios nos condenados à pena eterna. A parte de sua obra dedicada a descrever o infortúnio dos réprobos tornou-se conhecida como “O inferno de Dante”. Para o poeta italiano, o Diabo é o rei do inferno, bem como o anfitrião e algoz das almas que para lá vão.


Outro escritor que ajudou a disseminar a concepção que se tem hoje do inferno foi John Milton (1608-1674), autor do clássico “Paraíso Perdido”. Foi ele quem colocou nos lábios de Satanás a frase “é melhor reinar no inferno que servir no céu”, que se tornou célebre nos lábios de Al Pacino no filme “O Advogado do Diabo”.


Nem Dante, nem Milton, tão pouco Mary Baxter com sua “Divina Revelação do Inferno” poderão nos oferecer uma visão equilibrada acerca do assunto. Para termos um vislumbre do verdadeiro inferno, teremos que deixar nossos pressupostos de lado e mergulhar nas límpidas águas das Escrituras.


Há diversos vocábulos, tanto do hebraico, quanto do grego, que são traduzidos em nosso idioma como “inferno”. Porém, cada um deles encerra um significado distinto. Não são sinônimos. A primeira delas é Sheol, que em hebraico significa “sepultura” e aparece 62 vezes no Antigo Testamento. Sheol jamais sugeriu a ideia de um lugar de suplício ou de punição para os mortos. Esta ideia só surge a partir do Novo Testamento. Sheol é o destino do qual compartilha todos os seres humanos, independente de crença. A única certeza que se tem na vida é a morte. E deveríamos encarar isso com a maior naturalidade. Imagine se todos fôssemos Highlanders condenados a viver para sempre? A terra não poderia suportar tanta gente. A menos que ninguém mais nascesse. Caso contrário, haveria uma explosão populacional que esgotaria rapidamente os recursos do planeta. O escritor de Eclesiastes afirma que é necessário que uma geração vá para que outra geração venha e assim, a terra permaneça para sempre (Eclesiastes 1:4).


A segunda palavra é Hades, encontrada dez vezes no Novo Testamento e que, às vezes, é usada por seus escritores como tradução de Sheol. Entretanto, trata-se de conceitos um tanto quanto diferentes. Para os gregos, o Hades não era apenas a sepultura, mas o submundo, a região onde os mortos eram confinados. A sepultura seria apenas a porta de acesso ao Hades.


Um exemplo do intercâmbio entre as palavras Sheol e Hades é encontrado na tradução do Salmo 16:10, onde Davi diz: “Pois não deixarás a minha alma no inferno (Sheol=sepultura), nem permitirás que o teu Santo veja corrupção”. Pedro toma esta passagem profética e a aplica a Jesus em seu primeiro sermão que fora registrado por Lucas em grego: “Pois não deixarás a minha alma no inferno (Hades=região dos mortos), nem permitirás que o teu Santo veja a corrupção” (Atos 2:27).


O uso do vocábulo grego Hades em substituição ao hebraico Sheol ocorre por conta da proximidade entre os conceitos, ainda que os mesmos tenham escopos diferentes. O conceito de Hades é bem mais elaborado e sofisticado do que o de Sheol. Enquanto o Sheol se limitava aos sete palmos da sepultura onde o corpo era depositado, o Hades era amplo o suficiente para receber todos os homens, sendo dividido em duas partes: os Campos Elíseos, destinados aos bons, aos justos, aos vitoriosos; e o Tártaro, para onde iriam os maus e injustos.


Os judeus contemporâneos de Jesus estavam bem familiarizados com tais conceitos devido ao processo conhecido como helenização em que a cultura grega foi disseminada mundo afora. Talvez o verso vetero-testamentário que tenha servido de ponte entre os dois conceitos seja o que diz que “o Sheol aumenta o seu apetite, e abre a sua boca desmesuradamente; para lá descerá a glória deles, a sua multidão, a sua pompa e os que entre eles folgam” (Isaías 5:14). Portanto, o Sheol seria bem mais que uma sepultura individual, mas o destino comum a todos os homens.


Na parábola de Lázaro, Jesus faz uso deliberado destas categorias “gregas”, porém, adaptando-as a uma visão mais judaica. Os Campos Elíseos seriam para os judeus o equivalente ao Seio de Abraão, para onde foi Lázaro. O rico da parábola foi para o que seria o Tártaro grego. Tanto o Seio de Abraão, quanto o lugar de tormento para onde foi o rico se situavam no Hades, o submundo dos mortos. O Seio de Abraão não é o paraíso, tampouco o céu, mas um lugar reservado para os descendentes de Abraão dentro do próprio Hades. Há, entretanto, algumas diferenças entre o Hades grego e o Hades judeu. Por exemplo: para os gregos, o que separava os Campos Elíseos do Tártaro era um muro. Para os judeus, o que separava o Seio de Abraão do resto do Hades era um abismo intransponível. Foi, deveras, corajoso de parte de Jesus lançar mão dessas categorias para passar uma mensagem aos seus ouvintes. 


Acompanhe e compartilhe esta série de postagens sobre o inferno. Ainda que não concorde com tudo, ao menos lhe fará refletir.

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